17/11/2019 às 11h05

O fim do mundo como o conhecemos — ao menos, na renda fixa

Com os juros cada vez mais baixos, é hora de buscar alternativas às opções tradicionais de investimento em renda fixa: eis o tema da pensata de hoje, enviada primeiro aos assinantes da newsletter do Seu Dinheiro

Por Julia Wiltgen | Seu Dinheiro – São Paulo

Para começar o texto desse domingo (17), eu tomo emprestado o refrão da canção apocalíptica do R.E.M.:

“It’s the end of the world as we know it And I feel fine”

Hoje, eu quero debater com vocês sobre uma mudança fundamental na perspectiva dos investidores brasileiros. Os juros baixos parecem ter vindo para ficar, pelo menos até onde a vista alcança. E as razões não se restringem às nossas fronteiras. A questão é global.

Está certo que esse ambiente de juros negativos e inflação que não sobe nem com reza brava nos países desenvolvidos parece fazer tanto sentido quanto os fluxos de consciência de Michael Stipe — até mesmo para grandes especialistas, como já mostramos.

Mas a questão é que, ao menos por ora, isso representa o fim do mundo da renda fixa como nós o conhecemos. O investimento preferido do brasileiro — a renda fixa conservadora, tranquilinha, de baixa volatilidade, baixo risco de crédito e alto retorno — é coisa do passado. E os investidores estão precisando olhar para outras classes de ativos, com mais risco. Se não por vontade, por necessidade.

Acontece que estamos mal acostumados. O universo das ações, dos fundos multimercados, ETFs, fundos imobiliários e títulos de crédito privado é muito novo para a maioria dos brasileiros que têm algum dinheiro guardado. Fundos de previdência privada até agora investiram primordialmente na mesma renda fixa sossegada que já conhecíamos, e agora também vão ter que dar um passo adiante para entregar suas metas.

Na semana passada, eu fui a um evento promovido pela TAG Investimentos com o sugestivo nome de “Navegando Mares Desconhecidos — Como entregar resultados em um novo cenário”. Nos painéis, gestores de fundos discutiam alternativas para gerar um diferencial de retorno no novo cenário de juros baixos, e o público-alvo eram investidores institucionais, como os fundos de pensão, que estão tendo de repensar suas estratégias.

É claro que muito se falou sobre as boas perspectivas para a bolsa brasileira, inclusive sugerindo-se que as ações seriam os investimentos que compensariam pelos bons retornos que os títulos públicos atrelados à inflação (NTN-Bs) não seriam mais capazes de dar. Mas uma outra classe de ativos também foi muito debatida nos diferentes painéis: o crédito privado.

 

Tendência

Títulos de crédito privado são títulos de renda fixa emitidos por instituições financeiras e empresas. Os de menor risco são bastante conhecidos da pessoa física — CDBs, LCIs, LCAs. Mas os gestores em questão estavam se referindo a um tipo de renda fixa bem menos conservadora e à qual o brasileiro ainda não está acostumado: títulos que financiam empreendimentos imobiliários, de infraestrutura e do agronegócio, bem como empresas de todos os portes.

Alguns desses títulos, como as debêntures — sobretudo as incentivadas, isentas de imposto de renda — já chegaram ao vocabulário das pessoas físicas, mas algumas operações só são acessíveis a este público por meio de fundos.

A tentativa dos gestores no evento era de certa forma convencer os fundos de previdência de que eles teriam que olhar para essa classe de ativos — capazes de dar retornos mais altos que os títulos públicos — com mais carinho daqui em diante. Ou seja, mesmo que você jamais compre uma debênture ou invista num fundo de crédito privado, é bem possível que o seu plano de previdência, cedo ou tarde, esteja exposto a esse tipo de ativo.

Além de se tornarem atrativos em cenário de juro baixo, o mercado de crédito privado tende a se beneficiar também de condições que vêm se criando no país, como a redução da atuação do BNDES e os incentivos do Banco Central à concorrência nessa área. Com a retomada da economia, teremos cada vez mais negócios precisando de financiamento e tendo de recorrer ao mercado de capitais.

E isso é bom para o investidor pessoa física, que terá cada vez mais opções para diversificar a carteira e fazer seu dinheiro render. Só que às vezes eu acho que o brasileiro está menos preparado para investir em crédito privado do que em ações, por exemplo.

 

Renda fixa que varia

Ao menos do ponto de vista da compreensão, o investimento em ações é bem mais simples. Investir em ativos de crédito não é trivial; a informação sobre o tomador pode ser escassa e a avaliação da capacidade de pagamento tem que ser minuciosa. Diversificação também é um fator importante. A questão é que, se houver um calote, na pior das hipóteses o investidor perde tudo. Fora a baixa liquidez desse mercado.

Além disso, a baixa volatilidade dos títulos de crédito pode ser enganadora. O investidor se sente seguro, acha que não tem risco, até que um belo dia acontece algum estresse no mercado, os preços dos seus títulos ou das cotas do seu fundo sacodem à beça, e ele vê um retorno negativo sem estar preparado. Danou-se.

Isso aconteceu recentemente. Os títulos geralmente têm prazo longo, mas seus preços são marcados a mercado, conforme as perspectivas para as taxas de juros, além de oferta e demanda. Resultado: uma queda nos juros futuros valoriza esses papéis; já uma pressão vendedora para realização de lucros pode levar seus preços lá para baixo.

Sem que houvesse qualquer problema de calote ou piora nas condições de crédito dos tomadores, essas questões técnicas de mercado fizeram muitos fundos darem retorno negativo e apavoraram as pessoas físicas desavisadas.

 

Mudança de mentalidade

Eaonde eu quero chegar com isso? Simples: esteja preparado. É bem provável que, em algum momento, o crédito privado cruze o seu caminho. Um dos painéis do evento da TAG discutia inclusive sobre crédito high yield, aquele que sequer tem classificação de risco por agências de rating, emitido por tomadores teoricamente mais arriscados (teoricamente porque às vezes eles são só pequenos, não necessariamente são maus pagadores).

Para “se sentir bem” depois do “fim do mundo como o conhecemos”, como diz a canção, tenha em mente que:

– Baixa volatilidade não significa ausência de risco — pode haver risco de calote, de estresse ou mesmo falta de liquidez;

– Títulos de crédito podem ter boa rentabilidade, mas baixa liquidez e prazos longos — portanto, muitos dos fundos que investem nesse tipo de ativo podem demorar bastante tempo para atender aos pedidos de resgate, o que inclusive protege o investidor das oscilações bruscas;

– Risco de calote é um risco importante, pois pode fazer você perder tudo, tudo mesmo — então diversificação é essencial;

– Renda fixa pode ter risco de mercado, isto é, os preços dos ativos e cotas de fundos pode variar para cima e para baixo

No mais, se for optar por fundos de crédito ou mesmo multimercados que invistam nesse tipo de ativo, procure escolher gestores especializados no assunto — ou que invistam em fundos de gestores especializados. Expertise neste mercado é primordial, e o investimento via fundos proporciona uma diversificação difícil de se obter pelo investimento individual.