Marcação a mercado: Plataformas se mobilizam para regra de atualização de ativo de crédito

Medida trará efeito de oscilação preços no mercado secundário para as carteiras a partir do ano que vem

Por Adriana Cotias

O emblemático caso da concessionária Rodovias Tietê, que não conseguiu honrar seus compromissos e deixou 18 mil investidores que compraram o equivalente a R$ 1,4 bilhão em debêntures atônitos em 2019, levou a autorregulação da Anbima a se mexer para forçar os distribuidores a atualizar ativos de crédito pelo valor de mercado.

A regra começa a valer em 2 de janeiro e abrange, além dos títulos corporativos, os de dívida pública vendidos nas mesas das instituições financeiras, fora do sistema do Tesouro Direto. A intenção é dar transparência para uma classe que, do lado do investidor, se tornou protagonista na sequência dos aumentos de juros no Brasil. E chega também depois de um ano bastante movimentado de emissões de dívida pelas empresas, já que as portas para ofertas de ações permaneceram fechadas.

Nas carteiras de varejo, a chamada marcação a mercado será mandatória, enquanto para o público qualificado, com pelo menos R$ 1 milhão em patrimônio financeiro, haverá a opção de manter a metodologia atual se o investidor atestar que pretende carregar os papéis até o vencimento.

Com essa nuance na norma, alguns distribuidores, como XP, BTG Pactual e Órama, têm se antecipado na comunicação com as suas bases de alta renda, e parte dos clientes provocada pelos assessores e canais de atendimento para que confirmem se o objetivo é permanecer com os ativos até o vencimento. Nesse caso, podem manter a marcação na curva, que corresponde ao valor de aquisição do título, atualizado diariamente pelo indexador, seja o CDI ou o IPCA, e os juros relativos à remuneração do papel.

“O cliente qualificado com perfil de ‘trader’, que compra para fazer alguma operação antes de o papel vencer, tem interesse na informação da volatilidade, quer saber quando está mais barato para aumentar a exposição ou caro para realizar o ganho”, afirma Thiago Manso, responsável por vendas e negociações de renda fixa da XP. “Já para o investidor com viés de carregar para o vencimento um título indexado ao IPCA ou de renda fixa pré para a carteira, a volatilidade do dia a dia não é tão interessante assim e ele vai optar pela marcação na curva.”

O executivo diz que os grandes volumes de dívida privada no varejo da XP estão em títulos bancários, papéis que não sofrerão os efeitos da marcação a mercado. E, como a pessoa física já tem a experiência das oscilações de preços de ações, fundos imobiliários, de crédito e dos títulos comprados pelo Tesouro Direto, a nova regra tende a não trazer mudanças radicais.

Com a renda fixa sendo percebida como variável, no varejo, a Órama pretende restringir a oferta de crédito corporativo a operações de prazo menor, enquanto para o qualificado tem dado a opção, na hora do fechamento da ordem, para o investidor escolher se quer que seus ativos sejam atualizados conforme a nova regra ou pela metodologia antiga, diz Thiago Villela, diretor comercial da instituição. “A gente tem explicado que a marcação a mercado é uma forma transparente de preço para o cliente que eventualmente quer sair antes do vencimento, mas este não é o perfil do cliente Órama.”

O executivo afirma que nas discussões com a Anbima e a Ancord, que representa os distribuidores, percebeu algumas corretoras com dinâmica de giro intenso na renda fixa. Houve processo administrativo de investidor que foi surpreendido no preço ao zerar sua posição. “A gente trabalha com crédito olhando o rendimento de longo prazo e a renda mensal, como se fosse um fundo imobiliário”, diz Villela. Ele acha que o efeito colateral vai ser a inibição das emissões corporativas, um cenário mais adverso para formação de capital que vinha se ancorando em dívida em vez de ofertas de ações.

Pelos últimos dados da Anbima, no varejo os estoques de certificados de recebíveis imobiliários, do agronegócio (CRI e CRA) e as debêntures, tradicionais e incentivadas, somavam R$ 89,6 bilhões ao fim de setembro, em comparação a R$ 59,7 bilhões em dezembro passado, um crescimento de 50%. Os volumes já se equiparam aos do private banking, com um saldo de R$ 89,5 bilhões, praticamente estável em relação ao fim de 2021.

No Tesouro Direto, o volume que já tem atualização diária era de R$ 101,23 bilhões. Nas mãos do varejo há um total de R$ 99,7 bilhões, e, no private outros R$ 34,8 bilhões. Ou seja, existe um saldo de pouco mais de R$ 30 bilhões de títulos públicos que podem não estar sendo percebidos pelas oscilações diárias de preços. Papéis de dívida corporativa são considerados, contudo, a ponta mais sensível desse novelo, porque mal ou bem o risco soberano é conhecido.

“Vai ter um impacto positivo para o mercado porque o cliente vai conseguir acompanhar qual o valor de referência do papel de forma transparente e padronizada, se aquele ativo tem ágio, está valorizado, ou se está desvalorizado em função das condições de mercado trazidas por questões de risco de crédito e ‘duration’ [prazo médio] do papel”, diz Luciane Effting, vice-presidente do fórum de distribuição da Anbima. “Isso traz uma gestão mais atualizada e o cliente pode tomar a melhor decisão, se prefere carregar os papéis até o vencimento – e a maioria dos ativos tem duration mais longa -, ou se quer sair de forma antecipada e fazer outro investimento.”

A executiva, também chefe de distribuição de investimentos do Santander, diz que todos os intermediários estão se movimentando para estar com os sistemas prontos e as equipes de atendimento capacitadas para mostrar a nova informação para o cliente. “Outro benefício grande vai ser a educação financeira. À medida que o investidor passar a ter de forma mais visual e constante a oscilação do papel, ele vai entender como é importante saber quem é o emissor, o rating, o prazo, o setor”, diz Effting. “Apesar de aquilo que está comprando ser renda fixa, vai perceber que pode variar ao longo do caminho.”

Os ativos de crédito são obrigatoriamente marcados a mercado quando estão dentro dos fundos. Aqueles vendidos pelos distribuidores diretamente podem ser atualizados pela curva e o que o investidor enxerga é uma rentabilidade que se aproxima do que teria se mantivesse o papel até o resgate. Esse método persistiu por tanto tempo porque o Brasil não dispunha de um secundário ativo suficiente para fornecer preços para dívida corporativa, situação que mudou nos anos recentes com a multiplicação de emissões e de gestoras dedicadas ao segmento.

Para Effting, embora o público qualificado tenha em tese mais informação, a prática padrão esperada é a da atualização dos ativos pelo valor de mercado. “Caberá à Anbima, no papel de supervisão do mercado de distribuição, acompanhar e garantir que o objetivo da associação seja cumprido. O objetivo é dar transparência ampla para todos os investidores.” Ela lembra que, se o caso da Rodovias Tietê ocorresse em janeiro de 2023, o investidor teria a informação da piora do crédito, não seria pego de surpresa.

Na base do Itaú Unibanco, a marcação a mercado já era adotada para todos os papéis de dívida, então a regra da autorregulação não deve trazer nenhum ruído para os clientes, diz Rogério Calabria, superintendente da área de produtos de investimentos e de previdência do banco. “No mundo do crédito privado não bancário, sem garantia do FGC [Fundo Garantidor de Créditos], o melhor para o cliente é ver a posição dessa forma. Vai ser uma medida boa para o mercado que viu problemas com alguns papéis no passado, mas a gente já tem essa conversa com o cliente há muito tempo. Será bom porque tira um vício do mercado. O investidor, quando tinha o mesmo ativo aqui e em outro lugar, aqui via cair e no outro não, ele precisa entender essa diferença.”

O ideal, prossegue o executivo, seria que o investidor tivesse acesso aos dois preços, o saldo do que pretende levar até o vencimento em paralelo ao valor daquilo que poderia vender hoje. Calabria afirma que o Itaú está trabalhando para trazer essa informação adicional, mas não tem pressa porque já está aderente à autorregulação.

Ele avalia que o mecanismo é extremamente saudável para um segmento que vem ganhando liquidez significativa e que praticamente não existia há uma década. “Precisa ter transparência porque começa a ter ‘trading’ todo dia. Para uma série de coisas, se não dá o preço correto para o cliente, pode estar rifando o crescimento do mercado no tempo. É importante para o investidor e para o Brasil, porque tem toda a parte de debêntures incentivadas que financiam a infraestrutura e o CRI e o CRA que são os motores historicamente priorizados pelas autoridades com as isenções [tributárias].”

Patricia Palomo, chefe de investimentos da Unicred, diz que os clientes têm recebido material das instituições informando sobre as mudanças, explicando a diferença entre curva e mercado. “Alguns indicaram que os profissionais que os atendem estão sugerindo a manutenção na curva para os títulos que não pretendem se desfazer com a justificativa de não trazer volatilidade adicional para uma carteira que em teoria é para levar a vencimento”, diz.

Ela cita que um dos argumentos de venda mais frequentes para títulos privados, em especial os com prazos mais longos, é a possibilidade de liquidez antes do vencimento no mercado secundário. “Para aqueles profissionais que foram cuidadosos na explicação e deixaram claro os riscos dessa opção aos clientes, a volatilidade adicional dos papéis da marcação a mercado não deveria ser um problema.”

Thiago Castro, sócio e CEO da Tag Investimentos, considera que a maior abrangência da marcação a mercado representará uma mudança de chave para o mundo dos investimentos. O cliente passará a ter mais consciência da forma como os produtos são vendidos e também dos custos indiretos embutidos nas operações. Na sua percepção, tem potencial para ser um evento muito similar ao de 2002, quando foi instituída a regra para o sistema financeiro brasileiro. “É uma pena que alguns agentes de mercado estão encontrando caminhos para que não seja feito com a mesma eficácia de transparência que deveria”, afirma.